A Europa vivia o início da primeira conflagração mundial e o Brasil,
embora distante do teatro da guerra, necessitava fortalecer o seu
Exército, não só diante do que ocorria no velho continente, cujas
consequências já eram sentidas aqui, mas também por questões
internas.
A propaganda de guerra desenvolvida pelos dois blocos
beligerantes suscitou discussões em torno da nacionalidade, e essas
propiciaram ao governo as condições favoráveis para - entre outras
medidas - tirar do papel a lei do Sorteio Militar, promulgada em
1908.
Avivar os sentimentos patrióticos dos jovens, especialmente
daqueles de classe social mais alta, para aproximá-los da causa
cívica, fazia parte do programa de remodelação do Exército, já
desencadeado pelo Estado.
Além da ameaça externa, as dissensões políticas e os tumultos civis
internos que ainda marcavam a jovem república brasileira, tornavam
nítida a necessidade da organização de um exército forte,
disciplinado e competente, capaz de impor-se pela participação no
desenvolvimento do país e na formação da consciência nacional. Para
consolidar o programa era necessário um movimento de opinião, uma
campanha de convencimento, à qual foi chamado a participar o poeta
Olavo Bilac, que iniciara em 1915 os seus primeiros discursos nesse
sentido.
Criada a Liga de Defesa Nacional, Bilac eletrizou o país fazendo
conferências e proferindo discursos para estudantes e militares,
numa cruzada pela conscientização da juventude.
Foi naquele clima de entusiasmo nacionalista criado não só pela
propaganda do Estado, mas também pelo fantasma da guerra , que um
Sargento Telegrafista do Primeiro Batalhão de Engenheiros teve os
seus sentimentos cívicos alvoroçados pelos acordes de um dobrado de
autoria desconhecida que escutou no Rio de Janeiro, e resolveu
dar-lhe uma letra. Com os seus versos nasceu a primeira canção
militar brasileira, que ele intitulou Da Pátria Guardas.
“ Em 914 ou 15 eu conheci, tocado pelas bandas do Rio, um dobrado
muito bonito. Melodia alegre e marcial em todas as suas três partes.
Amante da boa música, fiquei querendo-o bem. Chamava-se
Capitão Cassulo. Como seria bonita uma canção militar com aquela
melodia suave e comunicativa! Dei-lhe pois uns versos que falavam
com certa insistência da sublime missão do soldado em seu apostolado cívico.
Destacava-o como guarda permanente da Pátria.” (Letra
da Canção do Soldado autografada pelo Ten.Cel. Alberto A. Martins).
São palavras publicadas em maio de 1949, na Revista do Clube Militar
- sob o título Erro Legislativo - pelo autor dos versos da conhecida
Canção do Soldado, o curitibano Alberto Augusto Martins, nascido
em frente ao antigo Fórum , na avenida Marechal Floriano Peixoto.
Com a execução do Sorteio Militar - escreveu Martins - o Exército
passou por profunda modificação em sua estrutura. Era necessário
preparar cenário adequado para os novos soldados. E a canção
militar foi um grande veículo dessa inteligente propaganda.”
Difundido pelo rádio, executado pelas bandas militares de todo o
país, incorporado pelo Exército e pelo povo, o dobrado ganhou
popularidade nacional.
Não poderia supor o
então sargento Martins, que os seus versos viriam a lhe
causar aborrecimentos.
Com a popularidade da canção , vieram as apropriações. Em São
Paulo, tomou o nome de Canção do Soldado Paulista, no Rio Grande do
Sul e em Minas, chamaram-na de Amor Febril, nas publicações
militares passou a chamar-se Canção do Exército, de autoria
anônima. Recebeu também adendos obtusos, além de aparecer como sendo
obra de um sr. F. Fonseca - observou Euclides Bandeira , a quem
Martins se queixou por carta: Minha canção, apenas divulgada, foi
adulterada!
Pelo jornal Diário da Tarde, de Curitiba, mais de uma vez Bandeira
referiu-se à canção, reclamando da omissão do nome de Martins como
autor dos versos e contra as impropriedades adicionadas às suas
rimas.
Também indignado com os erros com que era citada a canção no
hinário do Exército, seu superior hierárquico, o capitão José
Azevedo da Silveira Sobrinho, escreveu para o jornal A Noite, do
Rio, esclarecendo definitivamente a autoria dos versos.
Com o reconhecimento alcançado graças ao gesto do seu capitão,
Martins ganhou os apelidos de “Pátria Amada” e de “Amor Febril”,
que não o incomodavam. Os que o conheceram dizem que era de trato
fácil e agradável, e até mesmo que gostava dos apelidos.
Talvez o incomodasse mais a curiosa paródia que um humorista
carioca fez dos seus versos e que tornou-se tão popular entre
estudantes quanto as rimas originais.
O que realmente angustiava o sargento Martins era desconhecer o
nome do autor da melodia . E conviveu quase 30 anos com a
curiosidade de saber com quem partilhar o sucesso da canção, o que
veio a acontecer na década de quarenta, de forma inusitada.
Residindo no Rio, sabia apenas que o autor não seria de lá. Se o
fosse, não teria permanecido incógnito por tanto tempo, diante do
sucesso que a canção alcançou.
Na busca do autor, Martins consultou um conhecido compositor popular
e colheu o nome provável de um músico militar pernambucano, já
falecido, que ele anotou com carinho: Euclides da Costa Maranhão.
Era apenas uma possibilidade.
Com a declaração de guerra, em 1942, Martins substituiu alguns
versos e acrescentou outros doze à poesia original, adaptando-a ao
momento histórico. Com eles,
a canção tomou novo impulso e embalou os já exaltados sentimentos de
patriotismo dos soldados brasileiros, que teriam importante
participação no conflito.
(Ten. Cel. Alberto Augusto Martins,
autor da letra da Canção do
Soldado)
Passados quase trinta
anos do sucesso, surgiu em Belém do Pará, durante a guerra, o músico
Teófilo Dolor Monteiro de Magalhães, reivindicando a autoria da
canção, que teria composto em 1911, segundo afirmou.
Ao tomar conhecimento da revelação daquele músico, Martins
procurou-o imediatamente e, apesar da má impressão que teve de
Teófilo (que alegou ter perdido os documentos e a partitura da
música durante um naufrágio) “...acreditei nele” – disse em
carta ao jornalista Saul Lupion Quadros -” e procurei auxiliá-lo
naquilo que julgava ser sua reabilitação como notável músico”.
Militar patriota, cidadão cordato e correto, incapaz de supor que
alguém fosse capaz da vilania de intitular-se autor daquilo que não
produziu - especialmente tratando-se de um louvor cívico - Martins
acreditou de boa fé estar diante do compositor do Capitão Cassulo.
Com a ajuda de Martins, Teófilo conseguiu junto à empresa
fonográfica Odeon o registro do seu nome como compositor do célebre
dobrado.
Difundido pelo rádio para todo o país – com Teófilo agora citado
como autor - não demorou para que surgissem protestos vindos de
Pernambuco, contestando aquele músico e reclamando a autoria da
canção a um músico daquele Estado.
Estava criada a polêmica.
Teófilo insistiu na autoria e, quanto mais insistiu, sem prová-la -,
mais se fizeram ouvir os protestos dos pernambucanos.
Por fim, foi encontrada no Recife, datada de 1909, a partitura
original da melodia, do próprio punho do autor: o modesto músico
militar pernambucano, Euclides da Costa Maranhão. Aquele mesmo
precioso nome que eu um dia recolhi e guardei carinhosamente
- registrou Martins em seu artigo.
Mas a
revelação do nome do verdadeiro autor não colocou ponto final na
trajetória polêmica da canção.
Depois
de ter banido da memória o episódio, foi com espanto que Martins
deparou em jornais de maio de 1948, com a seguinte notícia:
“Camara dos Deputados – presentes 185 deputados, teve início a
ordem do dia com o Projeto no. 387-B, que concede uma pensão mensal
de mil cruzeiros a Teófilo Dolor Monteiro de Magalhães, autor da
Canção do Soldado.”
Indignado com a pretensão absurda, Martins redigiu o artigo Erro
Legislativo e encaminhou-a à Revista do Clube Militar, historiando
os fatos e desmascarando a fraude, na tentativa de evitá-la. Seu
artigo, no entanto, só foi publicado quase um ano depois - disse
ele , “mercê da curiosa prática das publicações mensais quando
atrasadas, de não darem saída a qualquer matéria, embora de cunho
relevante, senão na tiragem corresponde ao mês em que o trabalho
foi entregue à redação. E assim, a calamidade não foi evitada.”
Em
carta dirigida ao diretor do jornal O Dia, em outubro de 1959, pela
qual agradece ao jornalista Saul Lupion Quadros as palavras que ele
escreveu sobre a canção, Martins esclarece que a pensão foi
concedida, apesar da manifestação contrária do então deputado Café
Filho, que apresentou em plenário um memorial da família de
Euclides Maranhão provando ser ele o verdadeiro autor da canção.
E, com
um travo de amargura Martins encerra a carta, dizendo: Por isso
tudo, meu amigo, e em consequência de fato considerado de elevado
sentido moral e cívico, temos como pensionista do Estado um reles
usurpador.”
Ao
abordar a canção em um de seus artigos escrito antes do episódio da
fraude, Euclides Bandeira parece antever a reação dos pernambucanos,
ao dizer: Ahí fica o reparo. O de que precisamos é, como em 1914-15,
repetir: Nós somos da Pátria guardas.
Ciro Correia França
Fonte: http://www.jornaldepoesia.jor.br/rricupero2.html