sexta-feira, 14 de julho de 2017

A HISTÓRIA DA CANÇÃO DO SOLDADO

  A Europa vivia o início da primeira conflagração mundial e o Brasil, embora distante do teatro da guerra, necessitava fortalecer o seu Exército, não só diante do que ocorria  no velho continente, cujas consequências já eram sentidas aqui, mas também por questões internas. 
  A  propaganda de guerra desenvolvida pelos dois blocos beligerantes suscitou  discussões em torno da nacionalidade, e essas propiciaram ao governo as condições favoráveis para - entre outras medidas - tirar do papel a lei do Sorteio Militar, promulgada em 1908.
  Avivar os sentimentos patrióticos dos jovens, especialmente daqueles de  classe social mais alta, para aproximá-los da causa cívica, fazia parte do programa de remodelação do Exército, já desencadeado pelo Estado.
Além da ameaça externa, as dissensões políticas e os tumultos civis internos que ainda marcavam a jovem república brasileira, tornavam nítida a necessidade da organização de um exército forte, disciplinado e competente, capaz de impor-se pela participação no desenvolvimento do país e na formação da consciência nacional. Para consolidar o programa era necessário um movimento de opinião, uma campanha de convencimento, à qual foi chamado a participar o poeta Olavo Bilac, que iniciara em 1915 os seus primeiros discursos nesse sentido.
Criada a Liga de Defesa Nacional, Bilac eletrizou o país fazendo conferências e proferindo discursos para estudantes e militares, numa cruzada pela conscientização da juventude. 
Foi naquele clima de entusiasmo nacionalista criado não só pela propaganda do Estado,  mas também pelo  fantasma da guerra , que um Sargento Telegrafista do Primeiro  Batalhão de Engenheiros  teve os seus sentimentos cívicos alvoroçados pelos acordes de um dobrado de autoria desconhecida que escutou no Rio de Janeiro,  e   resolveu dar-lhe uma letra.  Com os seus versos nasceu a primeira canção militar brasileira, que ele intitulou  Da Pátria Guardas. 

“ Em 914 ou 15 eu conheci, tocado pelas bandas do Rio,  um dobrado muito bonito. Melodia alegre e marcial em todas as suas três partes. Amante da boa música, fiquei querendo-o bem. Chamava-se Capitão Cassulo. Como seria bonita uma canção militar com aquela melodia suave e comunicativa! Dei-lhe pois uns versos que falavam com certa insistência  da sublime missão do soldado  em seu apostolado cívico. Destacava-o como  guarda permanente da Pátria.” (Letra da Canção do Soldado autografada pelo Ten.Cel. Alberto A. Martins).
São palavras publicadas em maio de 1949, na Revista do Clube Militar - sob o título Erro Legislativo - pelo autor dos versos da conhecida Canção do Soldado, o   curitibano Alberto Augusto Martins, nascido em frente ao antigo Fórum , na avenida Marechal Floriano Peixoto. 
Com a execução do Sorteio Militar - escreveu Martins - o Exército passou por  profunda modificação em sua estrutura.  Era necessário preparar  cenário adequado  para os novos soldados. E a canção militar foi um grande veículo dessa inteligente propaganda.”
Difundido pelo rádio, executado pelas bandas militares de todo o país,  incorporado  pelo Exército e pelo povo,  o dobrado ganhou  popularidade nacional.
Não poderia supor o então sargento Martins, que os seus versos viriam a lhe causar aborrecimentos.
Com a popularidade da canção , vieram as apropriações. Em São Paulo,  tomou o nome de Canção do Soldado Paulista, no Rio Grande do Sul e em Minas, chamaram-na de Amor Febril, nas publicações militares  passou a chamar-se Canção do Exército, de autoria anônima. Recebeu também adendos obtusos, além de aparecer como sendo obra de um  sr. F. Fonseca - observou Euclides Bandeira , a quem Martins se queixou por carta: Minha canção, apenas divulgada, foi adulterada! 
Pelo jornal Diário da Tarde, de Curitiba, mais de uma vez Bandeira referiu-se   à canção, reclamando da omissão do nome de Martins como autor dos versos e  contra as impropriedades adicionadas às suas rimas.
Também indignado com os erros com que era citada a canção no  hinário do Exército, seu superior hierárquico, o capitão José Azevedo da Silveira Sobrinho,  escreveu para o jornal A Noite, do Rio, esclarecendo definitivamente a autoria dos versos.
Com o reconhecimento alcançado graças ao gesto do seu capitão, Martins ganhou os apelidos  de “Pátria Amada” e  de “Amor Febril”, que não o incomodavam. Os que o conheceram dizem que era de trato fácil e agradável, e até mesmo que gostava dos apelidos.
Talvez o incomodasse mais  a curiosa paródia que um humorista carioca fez dos seus versos e que tornou-se tão popular entre  estudantes quanto as  rimas originais.   
O que realmente  angustiava o sargento Martins era desconhecer o nome do autor da melodia . E conviveu quase 30 anos com a curiosidade de saber com quem  partilhar  o sucesso da canção, o que veio a acontecer na década de quarenta, de forma inusitada. Residindo no Rio, sabia apenas que o autor não seria de lá.  Se o fosse, não teria permanecido incógnito por tanto tempo, diante do  sucesso que a canção alcançou.
Na busca do autor, Martins consultou um conhecido compositor popular e colheu o nome provável de um músico militar pernambucano, já falecido, que ele anotou com carinho: Euclides da Costa Maranhão.  Era apenas uma possibilidade.
Com a declaração de guerra, em 1942, Martins substituiu alguns versos e acrescentou outros doze à poesia original, adaptando-a ao momento histórico. Com eles, a canção tomou novo impulso e embalou os já exaltados sentimentos de patriotismo dos soldados brasileiros, que teriam importante  participação  no conflito.

(Ten. Cel. Alberto Augusto Martins, 
autor da letra da Canção do Soldado)

Passados quase trinta anos do sucesso, surgiu em Belém do Pará, durante a guerra, o músico Teófilo Dolor Monteiro de Magalhães, reivindicando a autoria da canção, que teria composto em 1911, segundo afirmou.
Ao tomar conhecimento da revelação daquele músico, Martins procurou-o  imediatamente e, apesar da má impressão que teve de Teófilo  (que alegou ter perdido os documentos e a partitura da música durante um naufrágio)    “...acreditei nele” – disse  em carta ao jornalista Saul Lupion Quadros -” e procurei auxiliá-lo naquilo que julgava ser sua reabilitação como notável músico”.
Militar patriota, cidadão cordato e correto, incapaz de supor que alguém fosse capaz da vilania de intitular-se autor daquilo que não produziu - especialmente tratando-se de um louvor cívico - Martins acreditou de boa fé estar diante do compositor do Capitão Cassulo. Com a ajuda de Martins, Teófilo conseguiu junto à empresa fonográfica Odeon  o registro do seu nome como compositor do célebre dobrado.
Difundido  pelo rádio  para todo o país – com Teófilo agora citado como autor - não demorou para que surgissem protestos vindos de Pernambuco, contestando aquele músico e reclamando a autoria da canção a um músico daquele Estado.
Estava criada a polêmica.
Teófilo insistiu na autoria e, quanto mais insistiu, sem prová-la -, mais se fizeram ouvir os protestos dos pernambucanos.      
Por fim, foi encontrada no Recife, datada de 1909, a partitura original da melodia, do próprio punho do autor: o modesto músico militar pernambucano, Euclides da Costa Maranhão.  Aquele mesmo precioso nome que eu um dia recolhi e guardei carinhosamente - registrou Martins em seu artigo.
Mas a revelação do nome do verdadeiro autor não colocou ponto final na trajetória polêmica da canção. 
Depois de ter banido da memória o episódio, foi com espanto que Martins deparou em jornais de maio de 1948, com a seguinte notícia:
“Camara dos Deputados – presentes  185 deputados, teve início a ordem do dia com  o Projeto no. 387-B, que concede uma pensão mensal de mil cruzeiros a Teófilo Dolor  Monteiro de Magalhães, autor da Canção do Soldado.”
Indignado com a pretensão absurda, Martins redigiu o artigo Erro Legislativo e encaminhou-a à Revista do Clube Militar, historiando os fatos e desmascarando a fraude, na tentativa de evitá-la.  Seu artigo, no entanto, só foi publicado  quase um ano depois  - disse ele ,   “mercê da curiosa prática das publicações mensais quando atrasadas, de não darem saída a qualquer matéria, embora de cunho relevante,  senão na tiragem corresponde  ao mês em  que  o trabalho foi entregue à redação. E assim, a calamidade não foi evitada.”
Em carta dirigida ao diretor do jornal O Dia, em outubro de 1959, pela qual agradece  ao jornalista Saul Lupion Quadros as palavras que ele escreveu sobre a canção, Martins  esclarece  que a pensão foi concedida, apesar  da manifestação contrária do então deputado Café Filho, que apresentou em plenário um memorial  da família de Euclides Maranhão  provando ser ele o verdadeiro autor da canção.
E, com um travo de amargura Martins encerra a carta, dizendo: Por isso tudo, meu amigo, e em consequência de fato considerado de elevado sentido moral e cívico, temos como pensionista do Estado um reles usurpador.”
Ao abordar a canção  em um de seus artigos escrito antes do episódio da fraude, Euclides Bandeira parece antever a reação dos pernambucanos, ao dizer: Ahí fica o reparo. O de que precisamos é, como em 1914-15, repetir: Nós somos da Pátria guardas.

Ciro Correia França

Fonte: http://www.jornaldepoesia.jor.br/rricupero2.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário